Saiba o que é o pajubá, linguagem cifrada criada por trans e travestis que está no samba do Paraíso do Tuiuti

2025-02-27 IDOPRESS

Expressões em pajubá — Foto: Gustavo Anaral/Arte O GLOBO

RESUMO

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GERADO EM: 26/02/2025 - 20:31

"Pajubá no Samba: Representação e Evolução na Linguagem LGBTQ+"

O pajubá,linguagem cifrada de trans e travestis,ganha destaque no samba do Paraíso do Tuiuti. Com origem africana,é difundido em livros e cursos. Enredo do desfile homenageia Xica Manicongo,incluindo termos e carros temáticos. A linguagem evolui de proteção para representação,refletindo avanços na sociedade.

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Os versos iniciais de “Quem tem medo de Xica Manicongo?”,que vai embalar a Paraíso do Tuiuti no desfile do Grupo Especial do Rio,na segunda-feira,ecoam a familiaridade de palavras oriundas de idiomas trazidos do continente africano,como o iorubá e o nagô,costumeiras em tantos sambas-enredo: “Ê pajubá/ Acuendar sem xoxar pra fazer fuzuê/ É mojubá/ Põe marafo,fubá e dendê.” No entanto,o samba composto por Claudio Russo e Gustavo Clarão traz uma camada extra de significado: o pajubá citado na letra se refere a uma linguagem usada pela comunidade LGBTQIA+,sobretudo entre trans e travestis que,a partir da perseguição sofrida na ditadura militar,desenvolveram um código cifrado para sua proteção.

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No enredo que homenageia Xica Manicongo — considerada a primeira travesti não indígena documentada no Brasil,trazida da região do Congo no século XVI para Salvador (BA),onde foi condenada à morte por sodomia e feitiçaria pelo Tribunal do Santo Ofício —,as expressões “acuendar” e “xoxar” ressaltam a origem da linguagem,que foi buscar,entre outras fontes,o vocabulário dos terreiros,historicamente mais abertos à presença de pessoas LGBTQIA+ do que as demais religiões.

Além da Marquês de Sapucaí,o pajubá (ou bajubá,variante também utilizada) furou há muito a sua bolha de origem,com expressões usadas como gíria por outros grupos,a exemplo de “mona” (gay efeminado ou mulher),“xoxar/gongar” (zombar) ou “acué” (dinheiro). Ele chega ao público também por meio de cursos e livros. O mais recente deles,“Neca: romance em bajubá” (Cia das Letras),de Amara Moira,travesti que é escritora e professora,foi lançado no final do ano passado,e é considerado a primeira obra do gênero a utilizar a linguagem em toda a trama.

A autora Amara Moira — Foto: Divulgação/Renato Parada

Doutora em Teoria Literária pela Unicamp e também autora de “E se eu fosse puta” (2016,Ed. Hoo) e “Vidas trans: a coragem de existir” (2017,Ed. Astral Cultural,com outros autores),Amara começou a desenvolver a história em 2016,como um post de blog,e,três anos depois,virou um dos contos da antologia “A resistência dos vagalumes” (Ed. Nós). A obra narra o diálogo de duas travestis,Simona e Amara,lembrando desde a descoberta sexual na juventude à vida na prostituição — foi em contato com trabalhadoras sexuais no Jardim Itatinga,em Campinas (SP),que a autora aprendeu a linguagem. Por opção,o romance não traz um glossário,evitando a consulta dos termos a cada linha.

A proposta é que o leitor passe pelo mesmo processo de aprendizado de travestis,compreendendo cada palavra no contexto em que é usada,inspiração que veio de “Ulisses”,de James Joyce,tema da dissertação de doutorado da autora. Na primeira página,o leitor já é confrontado com a descrição da exigência de um cliente em pajubá: “Passada! O ocó,cê acredita que ele pediu pra eu nenar na neca dele?” (“O homem,cê acredita que ele pediu pra eu cagar no pau dele?”).

— A área de prostituição é o espaço primordial onde essa língua existe,onde ela foi criada e vai se reinventando diariamente. Existe um bajubá de ampla circulação,e outro mais cifrado,que é um código de segurança mesmo. Se eu for conversar em bajubá com quem está na pista hoje,vou deixar de entender muita coisa — diz Amara,que também é coordenadora do Museu da Diversidade Sexual,em São Paulo,e ministrou este mês,no Masp,um curso sobre a linguagem,com Isabella Miranda. — A ideia do romance é jogar o leitor nessa experiência do bajubá,que só se aprende ouvindo. Eu realmente ouvi a frase de uma amiga que havia acabado de atender um cliente,e depois fiquei pensando nessa musicalidade de “nenar na neca”.

'Picumã das Amapô'

Pesquisando para desfiles anteriores,o carnavalesco Jack Vasconcelos descobriu a história de Xica Manicongo e desde então pensou em transformá-la em enredo. Na passagem da Paraíso do Tuiuti pela Sapucaí,a história de sua luta contra a escravidão e a intolerância sexual e religiosa trará no último carro 29 personalidades trans que hoje são destaque em diversas áreas,das artes à política. A linguagem utilizada no samba também estará representada em um dos carros,chamado Pombagirismo Pajubá,com um ambiente que simula um meio urbano e as trabalhadoras das ruas acompanhadas por suas pombagiras.

— Nesse ambiente da rua,da noite,os estabelecimentos vão ter palavras em pajubá nos letreiros,numa tradução do seu comércio. Vamos ter o Bar Otim,como é chamada a bebida; o Restaurante Ajeum,que remete à refeição; ou o Salão Picumã das Amapô,ou seja,o cabelo das mulheres. Vamos ter ainda o AcuéBank,e também mandamos imprimir notas de 10,20,30 arôs,como o dinheiro também é chamado — adianta Vasconcelos. — O desfile vai homenagear esse “traviarcado” da Xica Manicongo. O Brasil é,pelo 16º ano consecutivo,campeão mundial de assassinatos contra pessoas transexuais e travestis. Vamos falar dessa violência que permanece há séculos,mas também celebrar todas essas mulheres que estão vivas e ativas na sociedade,mostrá-las felizes,cantando.

Jack Vasconcelos no barracão do Tuiuti e os letreiros em pajubá do carro Pombagirismo Pajubá — Foto: Nelson Gobbi

Para compor a letra da agremiação de São Cristóvão,Zona Norte do Rio,Claudio Russo conta que teve de fazer uma completa imersão,e não só no pajubá. O primeiro auxílio veio de uma lista de verbetes enviada pelo humorista e compositor Marcelo Adnet,um de seus parceiros no samba-enredo “Pede caju que dou... Pé de caju que dá!”,com o qual a Mocidade Independente de Padre Miguel desfilou no ano passado. Depois,o compositor foi ao terreiro de Pai Fábio D’ Cigano,em Nova Iguaçu,que incorporou Dona Praia,entidade também citada na letra.

— A Dona Praia é uma mestra do Catimbó da Jurema,o que tem tudo a ver com a Xica,que teve a sua iniciação no catimbó aqui no Brasil. Essa imersão espiritual foi fundamental para o processo de composição,nos ajudou a entender que a Xica é mais que um personagem histórico,ela é uma ideia viva. Depois que terminamos o samba,a quem mostrei primeiro,fora a minha família,foi a Dona Praia — lembra Russo,que também contou com a ajuda de Bruna Maia,amiga trans do carnavalesco Jack Vasconcelos. — Mesmo tendo empatia,você não sabe os pormenores,o que as pessoas passam,e acabamos generalizando tudo. Muita coisa fui aprendendo agora.

Capa do livro 'Neca',de Amara Moira — Foto: Divulgação

Autor de “Linguagens pajubeyras: re(ex)sistência cultural e subversão da heteronormatividade” (2017,Ed Devires),Carlos Henrique Lucas Lima ministrou de forma remota,na semana passada,uma Oficina de Escrituração Queer-Pajubeyra,ao lado de Milena Britto. Em março,o curso será realizado presencialmente na UFBA (Universidade Federal da Bahia),onde o professor defendeu a tese de doutorado publicada como livro.

Lima diferencia o pajubá histórico e suas “disseminações subalternas”,com adaptações de outros idiomas,como inglês,francês e italiano,e usadas por outros grupos que não trans e travestis,a exemplo de gays efeminados e lésbicas — por isso,a conceituação das várias formas de falar como linguagens pajubeyras. Em seus cursos,o professor vê um interesse não apenas nos vocábulos,mas em diferentes visões de mundo que acompanham o seu uso.

— Essas linguagens pajubeyras são uma forma de afronta à linguagem como foi estruturada na sociedade ocidental,dessa visão binária da normatividade que molda nossa vivência social de gênero — defende Lima. — Elas trabalham muito com o deboche,rindo do dominante. Quando criam palavras sem marcação de gênero ou feminilizam os masculinos,há uma subversão dessa ordem. Quem busca o curso quer olhar para as coisas de outra forma,e narrá-las a partir de uma outra sensibilidade.

Para Amara Moira,o fato de o pajubá estar perdendo sua função original de linguagem em código demonstra avanços na sociedade,ainda que os dados de violência permaneçam altos:

— Você vê travestis que nem aprenderam a falar,porque já vêm de outros lugares que não a rua. Se há a ocupação de outros espaços,e a segregação diminuiu,não há a necessidade de uma linguagem cifrada,de proteção. Pode ser que,em algum momento,ele não exista mais como conhecemos hoje,ou se torne só uma forma divertida de falar associada aos LGBTQIA+. Por isso,a importância de termos bons registros,que permaneçam como uma história viva da comunidade.

Glossário

Ajeum: comida,refeiçãoAlibã: policialAmapô: mulherAqué/arô: dinheiroAquendar: prestar atenção (também pode ser usado para o ato de esconder os genitais)Cacura: velho,homossexual mais idosoCoió: broncaEdí: ânusGigi: gilete ou navalhaGuanto: preservativo (derivado de luva,em italiano)Picumã: cabeloMona: gay efeminada ou mulherNeca: pênisOcó: homemOtim: bebidaTaba: maconha

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