Geopolítica da contravenção: nova cúpula reparte territórios e investe no mercado digital para compensar queda nas jogatinas

2025-02-24 HaiPress

Ascensão da 'nova cúpula' mudou mapa da contravenção no Rio — Foto: Arte O GLOBO

Como fazia nos fins de semana,um comerciante — sócio de pelo menos seis bares em Copacabana,no Centro e em Vila Isabel — percorria os estabelecimentos para checar o faturamento. Em 9 de junho do ano passado,ele iniciou sua ronda por volta das 8h,mas não completou o roteiro. Sem perceber,era seguido por uma motocicleta vermelha,pilotada por um homem de bermuda e camiseta laranja. O último ponto foi o Bar Parada Obrigatória,na esquina da Rua Souza Franco com o Boulevard 28 de Setembro,em Vila Isabel,na Zona Norte. Ele deixou o local e entrou em seu carro. Faltando 30 segundos para o meio-dia,o comerciante parou no sinal da esquina da Souza Franco com a Teodoro da Silva. Dois homens,num Polo cinza,saíram do veículo e atiraram 17 vezes contra ele,à queima-roupa. O homem da moto,conhecido como “visão”,era quem fazia a vigilância do alvo.

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A vítima era Antônio Gaspazianne Mesquita Chaves,de 33 anos. Segundo as investigações da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC),ele vinha desviando dinheiro das máquinas caça-níqueis instaladas em seus bares,para ficar com uma porcentagem maior do faturamento diário de R$ 4 mil gerado pelos dez equipamentos instalados no Parada Obrigatória. Testemunhas ouvidas pelos investigadores relataram que Gaspazianne adulterava os lacres dos equipamentos para aumentar sua fatia no esquema ilegal,ultrapassando os 25% a que teria direito no acordo. É o que,na linguagem da contravenção,chamam de “tombo nas máquinas”.

No segundo capítulo da série sobre o novo mapa do jogo no Rio,iniciada ontem,O GLOBO revela as alterações na geopolítica da contravenção fluminense com a ascensão da nova cúpula do bicho,o faturamento proveniente da jogatina tradicional ilegal e os novos investimentos dos herdeiros da contravenção. A guerra travada pelo espólio do bicho foi tema da primeira parte da reportagem .

Foi justamente pelos lacres — com o desenho do escudo do Fluminense — usados nas máquinas caça-níqueis que os investigadores da DHC chegaram ao nome do chefe que explora a jogatina na região: o contraventor Adilson Oliveira Coutinho Filho,o Adilsinho. No dia seguinte ao assassinato de Gaspazianne,os policiais apreenderam dez máquinas em outro bar da vítima,no Centro do Rio,com o mesmo dispositivo de identificação do Parada Obrigatória. O crime expôs a disputa pelo controle das lucrativas áreas de jogo de azar nas zonas Sul e Norte,e uma significativa mudança no mapa da contravenção com o surgimento da nova cúpula do bicho,que já vinha se desenhando desde 2023.

Relatório do homicídio de Gaspazziane produzido pela Delegacia de Homicídios da Capital,obtido com exclusividade pelo GLOBO,cita essa troca de poder e o surgimento de Adilsinho,personagem no negócio ilegal das máquinas,até então conhecido nas investigações apenas por comandar a máfia do cigarro e pela festa em comemoração aos seus 51 anos,no Copacabana Palace,com o tema do filme “O poderoso chefão”. O documento escancara a disputa pelos pontos que,antes da entrada de Adilsinho,pertenciam a Bernardo Bello:

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“Nesse sentido,é de conhecimento público que a contravenção é responsável pela exploração das máquinas caça-níquel,sendo certo,ainda,que as regiões de Vila Isabel e Centro,outrora comandadas por Bernardo Bello,atualmente,estão sob domínio do contraventor Adilsinho. Portanto,os atuais operadores das máquinas caça-níquel instaladas nos bares dos mencionados bairros do Centro e Vila Isabel são integrantes do grupo criminoso organizado liderado por Adilsinho”.

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Além de Adilsinho,fazem parte da nova cúpula Rogério Andrade e Vinicius Drumond,filho do contraventor Luizinho Drumond,que foi patrono da Imperatriz Leopoldinense,e morreu vitimado por um AVC em 2020. O trio é conhecido no universo do bicho como “Santíssima Trindade”.

Ao adulterar os lacres de cor amarela — que dispunham de QR code — para desviar dinheiro dos donos das máquinas,Gaspazianne estava assinando sua própria sentença de morte. Não bastou nem o exemplo de um de seus sócios em outro bar,Manoel Davi Pereira,que,no fim de 2023,foi levado por homens encapuzados. A família de Pereira fez registro na 20ª DP (Vila Isabel),mas seu paradeiro nunca foi descoberto. Em depoimentos na delegacia,testemunhas confirmaram que o sócio de Gaspazianne também teria desviado dinheiro das máquinas. Uma testemunha chegou a relatar: “o comentário era de que estava dando tombo” nos caça-níqueis.

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Com o sumiço de Pereira,Gaspazianne chegou a ir para Santa Quitéria,no interior do Ceará,a cerca de 190 quilômetros da capital,onde vivem seus pais. Só avisou parentes e amigos quando já estava lá. De acordo com as investigações,como tinha muito dinheiro investido em comércio do Rio,acabou retornando.

Havia sinais de que as coisas não estavam tão tranquilas no Parada Obrigatória,mas Gaspazianne parecia não perceber. Em março ou abril,em depoimento na DHC,o sócio da vítima no bar de Vila Isabel contou que o operador da contravenção,responsável pelo bairro,decidiu instalar câmeras no estabelecimento.

Durante as investigações da DHC,descobriu-se que,cerca de meia hora após o crime,alguém formatou as câmeras,remotamente,apagando as imagens de Gaspazianne dentro do Parada Obrigatória.

Os policiais da especializada conseguiram ainda identificar e prender “visão”,o motociclista que vigiava a vítima. Num trabalho de paciência e de observação,os agentes buscaram imagens dele ao longo do trajeto entre o Centro e Vila Isabel. A surpresa maior veio quando os investigadores perceberam que “visão” chegou a ser abordado por policiais militares,no Centro. Ao pedirem as imagens dos uniformes dos PMs,conseguiram identificar Ryan Patrick Barboza de Oliveira. Ele está preso desde agosto do ano passado.

Após a execução de Gaspazianne,o suposto emissário de Adilsinho também foi identificado pelos agentes da DHC como Renato Augusto Fernandes Duran,filho da ex-presidente do Salgueiro,Regina Celi Fernandes Duran. A mãe de Renato,segundo a delação premiada do ex-policial militar Ronnie Lessa — assassino-confesso da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes—,já fora um dos alvos do matador de aluguel,por ordem justamente de Bello.

Nessa época,Bello comandava a região que pertenceu a Waldemir Paes Garcia,o Miro,e ao filho Waldomiro Paes Garcia,o Maninho. O clã Garcia detinha uma região nobre e rentável formada por bairros da Zona Sul,Centro e Grande Tijuca. Por ser afilhado do bicheiro Ângelo Maria Longa,o Tio Patinhas,Maninho acabou herdando o território da Zona Sul com a morte do padrinho,em 1986.

Com a morte de filho e pai em 2004 — Maninho assassinado,Miro vítima de infecção pulmonar —,iniciou-se a disputa no clã. As gêmeas de Maninho,Tamara e Shanna Garcia,ficaram de lados opostos. Como,segundo uma convenção tácita,mulheres não podiam assumir os negócios,seus maridos lutavam pelo posto: Bello com Tamara; e José Luiz de Barros,o Zé Personal,com Shanna. Em 2011,este último acaba sendo executado.

Bello sai vitorioso,deixando Shanna e a mãe,Sabrina Harouche,prejudicadas na partilha dos dividendos dos negócios ilegais. Mesmo se separando de Bello,Tamara continuou ao lado do ex-marido. Foi aí que Shanna decidiu procurar Rogério como aliado. O desafio foi aceito e incentivou a união entre Rogério e Adilsinho,que ganharam a disputa. Bello,foragido desde novembro de 2022,tem quatro mandados de prisão contra ele por suspeita de homicídio e organização criminosa.

Após vencer a disputa com Bello e conquistar a área da família Garcia,a nova cúpula se aproveitou do vácuo deixado pela prisão de um rival para expandir seus tentáculos pelos domínios de outro tradicional clã da contravenção. Em novembro de 2023,agentes da PF prenderam o bicheiro Marcelo Mesqueu Simões,o Cupim,quando ele deixava a filha numa escola particular,na Barra da Tijuca. À época,Mesqueu — que também é policial civil aposentado e jogador profissional de pôquer — arrendava a maior parte dos pontos de jogo de José Caruzzo Escafura,o Piruinha,integrante da velha cúpula do jogo. Seu império chegou a 250 pontos espalhados por um corredor formado por 15 bairros da Zona Norte,do Méier a Irajá.

Após a prisão de Mesqueu — que contou com o apoio de Bello e,portanto,era desafeto da nova cúpula —,Adilsinho e Rogério pediram a benção de Piruinha para sucedê-lo. Como já estava afastado da gerência do jogo e seus filhos com tino para o negócio haviam morrido,Piruinha aceitou arrendar os pontos para a dupla mediante o pagamento de uma taxa de “chão”,ou seja,pelo uso de seu território. Em janeiro passado,Seu Zé,como Piruinha era chamado,morreu,aos 95 anos. Pessoas próximas à família afirmam que o acordo segue de pé: Adilsinho e Rogério vão ficar no controle da região com o apoio do clã Escafura,nos mesmos moldes do que acontece em Vila Isabel e na Zona Sul com os Garcia.

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O interesse da nova cúpula na área de Piruinha,no entanto,é anterior à prisão de Mesqueu. Conversas interceptadas pelo Ministério Público do Rio revelam que,seis meses antes do arrendatário ser preso,matadores de aluguel que atuavam para os herdeiros já monitoravam os passos do ex-PM Adriano Maciel de Souza,o Chuca — braço direito de Mesqueu e seu sócio na exploração dos pontos na área de Piruinha. O bando chegou a seguir seu carro em idas à academia. “Estamos em posição aqui,aguardando movimentar o carro pra gente poder seguir,ver se vai parar pra almoçar. Tamo vivendo a vida dele aqui”,informou aos comparsas o integrante do grupo responsável por seguir o ex-PM na tarde de 14 de julho de 2023.

Para maximizar os lucros,a "nova cúpula" tem até um especialista em reparos de máquinas caça-níqueis. Segundo a polícia,Osmar Pinheiro de Matos Júnior tem uma oficina no bairro Jardim Primavera,em Duque de Caxias,na Baixada Fluminense,exclusivamente para a manutenção dos equipamentos. Imagens das máquinas no local foram encontradas pela polícia numa conta de e-mail de Matos. Mensagens interceptadas pelos investigadores mostram que o profissional também faz vistorias regulares pela Zona Sul para conferir o estado dos caça-níqueis da quadrilha.

“Estou esperando o pessoal da segurança que vai me pegar aqui para me levar lá,para consertar umas máquinas e fazer vistoria em uma área lá de Copacabana”,disse Matos a um comparsa em 3 de abril de 2023,dia que a quadrilha de Adilsinho começou a invadir a Zona Sul.

A resposta escancara o método violento usada pelo bando naquela semana: “Pra amanhã,dá uma segurada porque os caras estão indo em todos os pontos,arrebentando,pegando dinheiro. Por enquanto,não vamos fazer manutenção,não. Até o patrão resolver o que vai fazer,acho que agora a bala vai começar a voar”.

Mesmo com Rogério preso desde outubro do ano passado,a aliança entre ele e Adilsinho continua. Segue o jogo.

Faturamento com apostas nos pontos teria caído 90%

A popularização de bets e cassinos on-line derrubou o faturamento dos contraventores com o jogo do bicho e caça-níqueis. Planilhas encontradas pela Polícia Civil numa conta de e-mail de um gerente de Adilson Oliveira Coutinho Filho,o Adilsinho,revelam que uma única máquina instalada num bar de Copacabana tinha faturamento médio de R$ 500 por semana entre maio e junho de 2023. Fontes que já atuaram na parte contábil da cúpula afirmaram ao GLOBO que,no início dos anos 2000,cada máquina podia render até R$ 2 mil semanais no bairro da Zona Sul — ou seja,o faturamento com os caça-níqueis caiu 75% nas duas últimas décadas. Os ganhos com o jogo de papel tiveram queda ainda mais brusca: os ex-contadores estimam a redução em 90% no mesmo período.

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— Os hábitos mudaram muito. Na virada dos anos 2000,o Rio vivia a febre das maquininhas,elas eram uma novidade que caiu nas graças da população. A geração mais nova não joga nas máquinas,joga nas bets. Essa queda no faturamento do jogo “analógico” está por trás das mudanças no mapa do jogo. Há 50 anos,os lucros na Região Metropolitana com o jogo ilegal eram tão exorbitantes que podiam ser divididos entre dez famílias. Hoje,esse montante é bem menor,e a tendência é que haja menos integrantes na cúpula — explica um ex-gerente de pontos de jogo.

Para compensar as perdas,a nova cúpula tenta se estabelecer no mercado digital. A investigação do assassinato do advogado Rodrigo Marinho Crespo — executado com 21 tiros por homens encapuzados,em fevereiro de 2024,em pleno centro do Rio — escancara como os novos chefões estão buscando tirar concorrentes do mapa para se impor no ramo das bets.

Um amigo da vítima contou à polícia que o advogado “tinha um sonho de ter uma bet,mas dizia que não era possível por conta da atuação da contravenção”. Outra testemunha revelou que,meses antes de ser morto,o advogado comprou “todos os domínios de sites relacionados ao mercado de sindicatos de bets que estavam disponíveis”. Já no celular da vítima,os investigadores encontraram diálogos travados pouco antes do crime em que Rodrigo mencionava a um amigo empresário um plano de “intermediar uma espécie de fusão entre uma casa de pôquer já existente na Zona Sul do Rio com serviços prestados por alguma bet,estruturando ambientes presenciais onde os jogadores pudessem realizar apostas on-line”,segundo relatório feito pela DHC.

O documento aponta que,após se instalar na Zona Sul,a nova cúpula passou a promover um cerco a empresários que atuavam no ramo de jogos de azar: “com a mudança da gestão,casas de pôquer e afins passaram a ser sobretaxadas,e algumas foram arbitrariamente fechadas por ordens do contraventor da área,em nítida demonstração de poder”. Além disso,ainda de acordo com o relatório,o maior investidor de um site de apostas esportivas on-line que estava procurando se regularizar no estado foi obrigado a deixar o Rio por “intervenção do jogo do bicho”.

Ao final do inquérito,três homens apontados como integrantes da quadrilha de Adilsinho — um deles,o policial militar Leandro Machado da Silva,acusado de alugar o veículo usado no monitoramento do advogado — viraram réus.

Na denúncia,a promotoria alegou que “a execução de Rodrigo Crespo não foi uma queima de arquivo,mas sim um aviso bastante violento e ousado contra todo e qualquer um que,mesmo dentro da lei,queira analisar a viabilidade de explorar os jogos de azar”.

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O Ministério Público do Rio já tem provas de que Rogério Andrade,outro integrante da nova cúpula,tenta há pelo menos cinco anos espalhar seus tentáculos pelo mundo digital. Um e-mail encontrado pelo MP na conta de um integrante do núcleo tecnológico da quadrilha do bicheiro mostra que,ainda no primeiro semestre de 2020,o bando estava engajado no projeto de criar um site de apostas fora do país para operar no Brasil.

“O 01 já possui uma licença fora do Brasil para atuar com os jogos,sugiro montar todos os projetos funcionando legalmente no país que ele tem autorização e,em seguida,qualquer brasileiro vai poder jogar no site. Quando ele tiver isso,nunca mais vamos correr o risco de a justiça achar que estamos fazendo algo ilegal,nunca mais ele vai ser contraventor,ele vai tirar onda de verdade”,dizia a mensagem.

Em agosto de 2022,quando Rogério foi preso pela Polícia Federal num sítio na Região Serrana do Rio,agentes apreenderam um bilhete no local com uma menção a uma plataforma de apostas,a Heads Bet,e a frase “já está pronta”. Desde meados do ano passado,o site da Heads Bet,empresa sediada em Curaçao,um paraíso fiscal caribenho,está fora do ar após mais de dois anos de operação.

Ao longo da mesma investigação,o MP do Rio interceptou uma troca de mensagens em que um dos gerentes de Rogério alertava seu interlocutor,interessado em operar “apostas de futebol feitas em um site”,a não sediar a operação em regiões de influência do bicheiro: “Irmão,isso aí é uma coisa que é do homem,entendeu? Se for na área,não pode,entendeu? Ele proíbe mesmo”.

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