'Cultura esquelética': o drama de adolescentes que querem pesar 35 quilos

2025-01-26 IDOPRESS

Conteúdos nas redes sociais podem estar influenciando jovens a desevolverem transtornos alimentares — Foto: Freepik

RESUMO

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GERADO EM: 24/01/2025 - 23:19

Pressão das Redes Sociais: Impacto dos Padrões de Beleza nos Transtornos Alimentares Juvenis

Em um relato marcado pela influência de padrões de beleza extremos das redes sociais,adolescentes como Sofia e Isabella enfrentam transtornos alimentares. Com o aumento da exposição e pressão por corpos esqueléticos,a busca pela magreza extrema impacta a saúde mental e física desses jovens. A urgência de intervenções multidisciplinares e a conscientização sobre os riscos são destacadas por especialistas,evidenciando a necessidade de proteção e orientação na era digital.

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À meia-noite,o rosto de Sofia,de 14 anos,foi iluminado pela luz fria da tela do celular. Deitada na cama,sozinha em seu quarto,ela fez o de sempre: abriu o Instagram e o TikTok para acompanhar a vida de seus "ídolos",na maioria jovens asiáticas,cantoras de k-pop ou atrizes. Uma delas promovia seu novo vídeo vestindo um curto vestido de uma marca de luxo; outra tomava um suco detox à beira de uma piscina infinita; a terceira lançava um beijo e sorria enquanto estendia o braço e fazia suas pulseiras brilhantes tilintarem em algum ponto de Paris.

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Sofia colocou o celular de lado. Não pegou nenhum de seus livros favoritos para tentar aliviar o que estava sentindo,nem pegou o violão para ensaiar alguma melodia. Levantou-se e foi até o maior espelho da casa,em um bairro da zona norte.

"Minhas coxas se tocam. Meus braços são largos",pensou. E chorou inconsolavelmente por aquela felicidade de luz fria que não lhe pertencia.

Além de dedicar seu tempo a essas vidas que considerava bem-sucedidas,Sofia observava a magreza daqueles corpos: o de sua cantora preferida,o da jovem de vinte e poucos anos com pernas de criança,o da idol com pulseiras que tilintavam em um braço ossudo.

Também lia os comentários: "Queria ter esse corpo","Você é linda".

Sofia,cujo nome foi alterado para proteger sua identidade,queria que seus ossos fossem visíveis à primeira vista. Assim,começou a desenvolver um transtorno alimentar (TA),que em 90% dos casos ocorre entre a infância e a adolescência,segundo relatórios da Associação Internacional de Profissionais dos Transtornos Alimentares. E a relação entre essas doenças e as redes sociais já foi comprovada por diversos estudos recentes.

Além do discurso da diversidade de corpos alcançar essas comunidades virtuais,hoje se registra uma tendência preocupante: um novo padrão de beleza esquelético se multiplica em milhões de contas no Instagram e no TikTok. Atrizes,modelos,cantoras e influenciadoras exibem seus corpos extremamente magros. E milhares de meninas,pré-adolescentes e adolescentes postam como seguem desafios para perder peso,mostrando seus estômagos afundados,braços,clavículas e joelhos em um antes e depois de dietas restritivas,jejuns intermitentes ou exercícios compulsivos,segundo psiquiatras,psicólogos e especialistas em transtornos alimentares consultados pelo La Nación.

A lógica das redes sociais,os benditos algoritmos,facilita o acesso a esses conteúdos de forma cirúrgica,direcionando justamente adolescentes que digitam palavras-chave como “dieta” no buscador. A rede social pode oferecer a elas o que,em muitos casos,se torna inevitável: uma prisão de ossos.

Que os ossos sejam visíveis sob a pele

Quando Sofia estava com 13 anos,após a pandemia,ela teve acesso a mais informações através das redes sociais. Informações ruins. Começou a seguir uma das muitas contas japonesas (algumas até verificadas) que dão conselhos para reduzir quadris,pernas e ombros visando fazer os ossos aparecerem sob a pele.

Uma publicação dessa conta incentiva o extremo. A foto de um "antes": uma mulher com quadris e pernas magras. A foto do "depois": uma mulher com quadris ainda mais estreitos,coxas retas como tábuas que não se tocam e joelhos ossudos,como nós que interrompem pernas esguias.

Durante meses,Sofia começou a restringir os alimentos e a inventar desculpas para não comer na escola ou à mesa com a família. Postava suas fotos,e familiares e amigos diziam que ela estava mais bonita. Até que parou de comer sem que seus pais percebessem. Já havia perdido mais de 10 quilos. Os ossos das costas se projetavam de forma afiada. E ela os escondia sob camisetas e moletons extragrandes.

A menina desenvolveu anorexia,um dos transtornos mais comuns entre os adolescentes,junto da compulsão alimentar (comer de forma descontrolada em curtos períodos) e a bulimia (comer compulsivamente e,em seguida,usar técnicas purgativas ou submeter-se a longos períodos de restrição alimentar). Os TAs são um grupo de doenças psiquiátricas que provocam pensamentos e comportamentos não saudáveis,obsessivos e de alto risco relacionados à comida e à imagem corporal.

O que Sofia estava sofrendo não era por capricho. Há fatores psicológicos,como o perfeccionismo,a autoexigência e a baixa autoestima,que predispõem a essas doenças,além de dinâmicas familiares disfuncionais (situações de violência,pais que não comem com os filhos por estarem fazendo dieta,ou que criticam suas características físicas na frente deles) e aspectos biológicos hereditários,segundo as pesquisas mais recentes.

Um fenômeno global é o pano de fundo para a doença de Sofia e remonta à pandemia,quando muitas crianças começaram a consumir redes sociais de maneira extrema. O uso do celular foi naturalizado como distração,tornando-se quase um brinquedo.

— O impacto no pós-pandemia foi que a prevalência dos TAs entre 9 e 14 anos cresceu 100% — explica Juana Poulisis,psiquiatra especializada em TA e fellow da Academy of Eating Disorders (Iaedp). — Ao serem expostos às redes,veem um recorte da realidade que lhes causa mais insatisfação e entram em contato com todo tipo de informação prejudicial para a saúde.

Candela Yatche,psicóloga e fundadora da Bellamente,uma ONG focada na prevenção de TAs,afirma que as redes sociais oferecem inúmeros estímulos para que adolescentes e crianças desenvolvam um transtorno alimentar.

— Ao propor a manipulação da imagem por meio de filtros e a publicação de fotos corporais,as postagens ficam sujeitas à avaliação através de curtidas e comentários — explica Yatche. — Isso pode impactar negativamente a autoestima de meninos e meninas,ainda mais com o aumento do ciberbullying e dos discursos de ódio relacionados ao corpo.

TikTok mostrava garotas magras

Isabella,que hoje tem 18 anos,lembra-se de quando era criança,aos 9 anos,e comia escondida. Começou a desenvolver um transtorno alimentar após um pacto inocente com sua mãe. A mulher,que havia tido um TA não tratado,iniciou uma dieta após uma gravidez. A menina,para ajudá-la,disse que faria a dieta com ela. Com o tempo,Isabella não conseguiu manter as restrições e começou a comer escondida,sozinha em seu quarto. Sentia culpa e medo de que sua mãe não a amasse mais.

Durante a pandemia,quando tinha 14 anos,o transtorno se intensificou.

— As redes sociais tiveram um peso muito grande. Comecei a seguir desafios de dietas de até 20 dias. Fiquei obcecada. Fazia duas horas diárias de exercícios aeróbicos. — lembra Isabella em uma conversa pelo WhatsApp.

A jovem relata que o algoritmo das redes sociais auxiliou no desenvolvimento do transtorno:

— Depois de um tempo,meu TikTok e Instagram estavam cheios de pessoas que haviam emagrecido,com seus antes e depois.

“Por muito tempo,eu quis estar ossuda”,conta sobre o período em que as imagens das redes sociais tornaram-se modelos a seguir. Na época,uma amiga disse uma frase que pretendia ser um alerta: comentou que ela estava esquelética,que ninguém a amaria daquele jeito,nem mesmo seu namorado.

— Isso me marcou; comecei a ter medo do abandono. Comecei a me ver doente,mas ainda assim a força do transtorno não me deixava comer,eu tinha pavor de engordar — lamenta a jovem,que hoje trata sua condição com uma equipe especializada na Cidade de Buenos Aires.

Há cerca de 20 anos,um TA podia ser desencadeado pelos modelos de beleza vistos em revistas ou na televisão.

— Hoje,as crianças estão constantemente expostas a modelos de beleza nas redes sociais — explica Alejandra Freire,nutricionista do Hospital de Clínicas da Universidade de Buenos Aires e supervisora certificada especialista em TAs pela Iaedp. — Antes,pelo menos havia horários de proteção ao menor; hoje,elas têm acesso às mesmas coisas que os adultos.

Para ilustrar o impacto,Freire faz referência a um estudo publicado na revista científica internacional Nutrients que,em 2023,analisou a prevalência dos transtornos alimentares em relação à dependência de redes sociais. Entre 350 estudantes que utilizavam redes,41% apresentavam um consumo compulsivo ou viciante. E,justamente,uma proporção semelhante,42%,havia desenvolvido algum transtorno alimentar.

Saber o seguinte deveria motivar políticas públicas: segundo a Associação Nacional de Transtornos Alimentares da Argentina,“os transtornos alimentares possuem a segunda maior taxa de mortalidade (associada a suicídios e questões clínicas) entre todos os transtornos de saúde mental,ficando atrás apenas da dependência de opioides”.

No ano passado,foi aprovada na Austrália uma lei que proíbe menores de 16 anos de acessar redes sociais. As empresas que descumprirem a norma podem ser multadas em até 50 milhões de dólares. Na Catalunha,sites que fazem apologia aos TAs podem ser multados em valores de até 100 mil euros. Na Argentina,não há nada semelhante.

No Brasil,a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital é regulada por diversas legislações. O Marco Civil da Internet estabelece princípios e garantias para o uso da internet no país,com foco na proteção da privacidade e segurança dos usuários,incluindo os menores de idade. A lei também determina que plataformas online adotem medidas para garantir a proteção de dados pessoais,com atenção especial ao público infantil.

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) reforça essas diretrizes ao impor regras específicas para o tratamento de dados de crianças menores de 12 anos. Segundo a LGPD,o consentimento para o uso dessas informações deve ser fornecido por um dos pais ou responsável legal,e as empresas devem implementar mecanismos adicionais para proteger os dados desse grupo. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece medidas para impedir a exposição de menores a conteúdos impróprios,além de prever ações contra a disseminação de materiais que incentivem crimes,violência ou comportamentos prejudiciais ao seu desenvolvimento.

Queria ser como aquela cantora que pesa 35 quilos

— Durante a pandemia,o padrão de beleza de Sofia passou a ser o de uma cantora ou influenciadora asiática que mede 1,60m e pesa 35 quilos. Só ossos. — diz Fernanda,mãe da adolescente,ao recordar o que a filha viveu aos 11 anos. — Aos 13,ela começou a evitar certos alimentos e a se trancar no quarto. Nas redes,passou a consumir animes,bandas de k-pop e séries românticas coreanas.

Fernanda descreve parte de uma tendência que se intensificou nos últimos anos: a disseminação dos cuidados corporais vindos do Oriente,muito consumidos durante a pandemia,e a chamada "onda coreana",com a popularização de séries e novelas sul-coreanas (k-dramas),além do fenômeno dos grupos de k-pop,nos quais predomina um padrão de beleza extremamente magro.

Esse fenômeno pode ser considerado um fator de influência nos transtornos alimentares,segundo um estudo de 2024 publicado no Journal of Behavior and Feeding do México. Apesar de as mulheres orientais,fisicamente,serem menores que as ocidentais,"os padrões de beleza delas são muito rígidos",explica o estudo.

Ao buscar no TikTok algum ídolo de k-pop,os resultados mais populares detalham o que eles comem,o que evitam,quanto pesam e medem,ou como emagreceram. Nesses conteúdos,os comentários são alarmantes: "Quero ter o corpo dela,mesmo que fique doente"; "Deus,quero ser como ela".

Claro que o fenômeno da magreza extrema aparece em contas de jovens ao redor do mundo. Os resultados são impressionantes ao pesquisar por tags como formas de perder peso ou bones (ossos,em inglês). A tela se enche de imagens de adolescentes com corpos doentes,esqueléticos,que dão dicas de como ser como eles.

— Quanto mais magras e doentes estão,mais curtidas e visualizações recebem,e isso não ajuda nem essas meninas nem quem se inspira nelas — explica Poulisis.

A amiga tóxica: uma voz na cabeça

Quando Isabella tinha 14 anos,sua mãe descobriu que ela provocava vômitos. A mãe ficou preocupada. Isabella prometeu que não faria mais isso,mas continuou com esse comportamento por um ano inteiro. Ela se inspirava em garotas que gravavam vídeos no TikTok usando áudios do filme Abzurdah (2015),no qual a protagonista sofre de bulimia e se despede do mundo.

— Como a protagonista desse filme,comecei a ter comportamentos problemáticos,a querer me machucar — relembra. — Sentia que meu transtorno não tinha valor se não fosse como o dela.

Ela se odiava. Chegou ao fundo do poço e pediu a uma tia que a levasse a um psicólogo:

— Eu não sabia o que tinha. Só queria que aquela voz na minha cabeça desaparecesse.

Antes do transtorno,Isabella era uma criança feliz. Quando o desenvolveu,ficou triste,não queria estar com a família ou sair com amigas,principalmente se isso envolvesse comer.

Sofia também pediu ajuda,à sua maneira. Uma noite,há um ano,no silêncio da casa,pegou o celular e,com os olhos inchados de tanto chorar,postou em uma conta secundária do TikTok — desconhecida pelos pais — vídeos replicando o áudio de um filme em que a protagonista dizia que iria se suicidar. Algo parecido com o que Isabella fez,mostrando como as redes sociais replicam comportamentos tóxicos.

— Descobrimos os vídeos por meio da filha de uma amiga. Fiquei mais assustada com isso do que com a comida. Depois conectei tudo. Ela estava apática; abandonou o vôlei,que adorava,e não fazia mais festas do pijama com as amigas —"conta Fernanda,ainda consternada.

Ela agiu rapidamente: na mesma semana,Sofia começou,com sua família,um tratamento multidisciplinar com psiquiatra,nutricionista e psicóloga.

— As crianças costumam ter uma recuperação rápida,mas para evitar a cronicidade é importante uma intervenção imediata e multidisciplinar envolvendo toda a família— explica Poulisis. — Para isso,é essencial identificar os sinais de alerta ou red flags (badeiras vermelhas em inglês).

"Consigo ignorar os comentários"

— O que as crianças consomem nas redes sociais é um fator preditivo da doença e deve acender alertas — explica Freire.

Ela cita outro estudo,publicado em 2024 na revista Nutrients,que analisou dois grupos de jovens com transtornos alimentares. Em um grupo,os celulares foram retirados por uma semana; no outro,o uso foi permitido.

— No primeiro grupo,ao reduzir o acesso às redes,houve uma diminuição significativa dos sintomas em comparação ao grupo que continuou utilizando as plataformas — detalha.

Embora Freire e Poulisis concordem que é positivo adiar o acesso às redes,elas alertam que não se deve demonizá-las,já que são instrumentos de comunicação para os jovens. Por isso,defendem a necessidade de "alfabetização".

— É uma abordagem de redução de danos. É preciso analisar com eles as mensagens de cada conta para que desenvolvam uma consciência crítica — explica Poulisis.

Durante o tratamento,Isabella enfrentou momentos críticos em sua saúde e foi internada três vezes. Após cinco anos,já consegue identificar contas que não lhe fazem bem:

— Também consigo ver comentários sobre corpos e ignorá-los.

Sofia melhorou muito sua saúde física e mental,mas ainda tem crises de choro. Às vezes,não quer falar sobre o assunto porque teme recaídas. Diz que sua doença é "como uma amiga de quem sente falta",mas que precisa manter distância porque "é tóxica".

Quando Isabella fala sobre sua condição,ouve-se ao fundo o som do mar indo e vindo. Ela explica que o monstro na sua cabeça se calou. Já não busca mais evidenciar seus ossos.

— Posso dizer que já não me odeio. Não vou mentir,ainda não me amo,mas consigo conviver com meu corpo como aliado,não como inimigo. — diz. — Voltei à praia,a me banhar no mar,a sair para comer com amigos e família. Posso dizer que voltei a desfrutar,voltei a viver.

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